sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Matosinhos: história & festas


Ulisses Passarelli






MATOSINHOS:

história & festas









- 2012 -

Cantiga da Paz


 Cantiga da Paz

 Dom Pedro Casaldáliga

“Vento de Deus te traz,
Bem-vinda sejas, pomba da paz!

Todas as línguas cantem teu santo nome.
Todos os povos vivam por ti concordes.
Todas as religiões te dêem abrigo.
Todos os corações sejam teu ninho.
Seja o nosso tempo de jubileu.
Fica, por fim, conosco, pomba de Deus!

Planta tua oliveira em nossa terra,
unge tantas feridas de tantas guerras,
sela as nossas vidas no teu amor,
ave-pascal nascida do peito aberto do Redentor!”


Oferecimentos & agradecimentos


Ofereço com perene e sincera gratidão:

- a Comissão do Divino;
- aos festeiros da Gruta do Divino;
- a Maurício Detomi – pela consideração especial; 
- a Chico Lobo e Ângela Lopes;
- aos congadeiros e folieiros que participam desse jubileu; 
- a memória dos foliões Luís Candinho, Zé Moreno, Juquinha, Dinho, Nhônhô, Tião Domingos, Totonho Benzedô, Aquino Orff e dos nossos irmãos folieiros Chiquito Matias, João Liá e seu Quinzinho;
- a memória dos capitães de congado Luís Santana, Zé Camilo, Valdemar Fagundes, Zé Tita, Geraldão, Zé Francisco, João Lopes, Juca, Altamiro Ponciano, Wilson da Costa e dos congadeiros Pinduca, Chico Gago, Geraldo do Banjo e Antônio Bêra-muro;
- a memória dos juízes de prendas João Batista de Ávila Filho e Geraldo Quirino;
- aos membros do reinado, inclusive os que já partiram, especialmente Zequita, Nem, Dona Tedinha, Castilho, Debita, Antônio Alves e Chico Cumbuca;
- aos sacerdotes envolvidos no jubileu;
- a professora Betânia Maria Monteiro Guimarães;
- aos que encontram sua identidade espiritual nesta festa. 

Que a luz do Divino se derrame em efusão sobre todos.


Imagem do Divino Espírito Santo do Bairro de Matosinhos. 

Notas e Créditos

* Texto e foto: Ulisses Passarelli

Explicações


O presente trabalho se ocupa em estudar a história e as festas de Matosinhos, sobretudo a do Divino Espírito Santo. Matosinhos é o mais populoso bairro de São João del-Rei, no centro-sul do estado de Minas Gerais. 

Melhor seria dizer que estudo as “histórias”. E por que não estórias? Me refiro à parcela extra-oficial, aquela que não consta nos livros e documentos: a cultura popular, verdadeira riqueza do povo e o elo de ligação entre o passado e o presente. É ela que sustenta boa parte da tradição e dá sentido à própria história, que do contrário não seria vida, mas um amontoado de informações mortas. Se tratamos de uma ciência humana devemos antes de mais nada tratá-la com humanismo. Esse aspecto será privilegiado neste estudo.

Quanto às festas o enfoque será dado à Festa do Divino, justo aquela que dentre tantas do lugar consegue reunir em seu bojo a maior parcela dessa cultura que acabo de citar. Sua trajetória ao longo dos anos é o meu objetivo central.

Não posso porém deixar de aludir às outras festas, ainda que de breve passagem, sobretudo à do padroeiro, o Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Isso porque outrora eram uma só, desligadas nos meados do século XX para assumirem outra coloração, objetivo e destino. Não nego o sonho de um dia ver os dois jubileus unidos como noutros tempos, mas creio que nunca verei isso. 

Nos meios populares, essa festa é um evento muito esperado. O observador superficial verá nela apenas a oportunidade da quebra do cotidiano, mas de fato elas são o dia da verdade, da expressão maior da fé e da renovação das esperanças. A festa confirma a aliança com Deus, dá forças para se aguentar a peleja cotidiana. Observando com apurada sensibilidade as festas açorianas que se realizam na Ilha Terceira em louvor ao Senhor Divino, MENDES (2001) teceu estes comentários sábios, perfeitamente transponíveis para o nosso contexto: 

A festa religiosa situa-se na atitude do homem crente frente ao Mistério no âmbito do sagrado. Expressa-se em linguagem simbólica, característica da linguagem humana feita por ritos, palavras e gestos. É uma forma de expressar a atitude religiosa, onde entra o sentimento e a emoção, como resposta ao Mistério que se faz presente. Esta expressão é pessoal, visto tratar-se de um encontro, mas, porque transborda o próprio indivíduo e se expressa com outros, nas mesmas categorias culturais e tradicionais, tem necessidade de ser partilhada em comunidade (sic, p.25). 

Perscrutando novos e velhos jornais, além de outras fontes, este estudo só tem o compromisso de colaborar com o registro dos fatos passados e atuais envolvidos com o Bairro de Matosinhos. Procuro sem academicismo demonstrar os caminhos evolutivos dos festejos ao longo da estrada histórica, inclusive suas progressões em relação ao passado. Essas mudanças são enfim a sua própria vida. A festa não está engessada. 

Pequenas parcelas do conteúdo deste estudo já foram em parte externadas, por via oral e escrita, num conjunto de informações contidas em entrevistas, matérias jornalísticas, artigos, que se esparramaram por jornais, boletins, livros, teses, mídias digitais, além de rádio e televisão, tudo com o objetivo da divulgação em prol do evento, mas nem sempre com o devido respeito à verdadeira autoria. 

As impressões de minha participação direta na organização da festa, de 1998 a 2005 também estão contidas. Coloco ainda as observações de 2006 a 2011, quando já não fazia parte da comissão de festeiros. Consta ainda do presente volume as principais notícias do “bairro-cidade”, que perpassaram pela imprensa são-joanense nos primeiros anos do presente século. 

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli           

Nótulas geográficas sobre São João del-Rei

São João del-Rei está situada na Mesorregião Campos das Vertentes, do centro-sul de Minas Gerais e polariza uma das três microrregiões dessa área: Microrregião de São João del-Rei. Em relação às quatro capitais do sudeste, dista aproximadamente 184 km de Belo Horizonte, 331 do Rio de Janeiro, 470 de São Paulo e 575 de Vitória. Sua posição geográfica é de 21º 08’ 07” de latitude sul e 44º 15’ 41” de longitude oeste. A população total do município, segundo o senso do IBGE, ano 2000, é de 86.258 habitantes, assim distribuídos: 

zona rural

DISTRITO
POPULAÇÃO (nº de habitantes)
São Miguel do Cajuru
1.114
Emboabas
1.129
Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno
2.586
São Gonçalo do Amarante
810
São Sebastião da Vitória
2.003
SUB-TOTAL:
7.642


zona urbana


BAIRRO
POPULAÇÃO (nº  de habitantes)
Bonfim
4.116
Centro
7.958
Colônia
7.002
Fábricas
9.139
Jardim Central
2.253
Matosinhos
18.671
Senhor dos Montes
6.335
Tijuco
14.881
Sem especificação
8.261
SUB-TOTAL:
78.616
         
Vista parcial de São João del-Rei tomada da "Estrada do Cascalho",
no final do Bairro Tijuco. Ao fundo, a Serra de São José. 10/11/2013. 
A população em 2010 era de 84.404 pessoas, das quais 79.790 na zona urbana e 4.614 na rural. Do total, 40.494 são do sexo masculino e 43.910 do feminino. Os domicílios somam 33.373. A densidade demográfica é de 57.67 hab/km2 [1] .

A estimativa de populacional segundo o site do IBGE para 2014 foi de 88.902 pessoas (acesso em 04/06/2015, 15:20 h).

A área do município é de 1.447 Km2. Além da sede, o restante da área está dividida em cinco distritos, que levam os nomes das vilas que os encabeçam: Emboabas, Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, São Gonçalo do Amarante, São Miguel do Cajuru e São Sebastião da Vitória, locais de muitas tradições.

Economicamente o que movimenta a cidade é o comércio e a prestação de serviços. O turismo tem sua contribuição, mas deseja-se que se torne mais forte. A indústria é pequena para a necessidade municipal, destacando-se a metalúrgica e têxtil. Predominam as micro-indústrias. É especialmente importante a produção de peças de estanho. A agro-pecuária com algumas exceções é de pequenas proporções e de efeito mais de subsistência ou de pequenas vendas. É polo microrregional de 4º nível. A exploração mineral que deu origem à cidade persiste, rendendo areia, caulim, argila, ouro, calcário, estanho, ocre.

Geologicamente predominam rochas do período pré-cambriano e nas áreas baixas - calhas fluviais (aluvião) - depósitos quaternários. A altitude municipal média está entre 900 e 1.100 metros, registrando-se extremos: 860m (estação ferroviária), 1.218 (Serra do Lenheiro), 1.283 (Serra dos Matolas) e 1.338 (Serra dos Olhos d’Água - ponto culminante do município).

A microrregião situa-se no Planalto do Sudeste, complexo da Mantiqueira. Destaca-se na microrregião a Serra das Vertentes, que tem rumo oeste, (Lagoa Dourada e Resende Costa), funcionando como divisor de águas do Rio Grande, São Francisco e Doce. De cada face sua, vertem águas para uma dessas bacias hidrográficas.

O clima é mesotérmico, Tropical de Altitude, variando as temperaturas médias entre 15,5º C (julho - mês mais frio) e 22,2º C (fevereiro - mês mais quente), atingindo porém picos. A média anual fica em 19,2º C. Na prática, temos verões chuvosos, com intervalos quentes entre os períodos de chuva (veranicos) e o inverno seco e frio (chegando a cair geada). Primavera e outono são relativamente nítidas e reconhecíveis pelo clima ameno intermediário. O índice pluviométrico anual é de 1.437 mm.

A vegetação já muito degradada misturava áreas de cerrado, campo de altitude (altimontanos) e rupestres, que são ainda usados para a pecuária extensiva; e mata tropical de encosta, quase extinta e outras vezes convertida em pequenas capoeiras, com o corte das árvores principais ou tendo mesmo aspecto secundário. Resistem raras matas de galeria (ciliares) ao longo dos rios. O cerrado foi em grande parte derrubado, convertido em lenha e mourão, desde a variedade típica até áreas restritas de cerradinho, cerradão e carrascal. Nas áreas baixas predomina a vegetação paludícola de várzeas e brejos.

A hidrografia tem como artéria principal o Rio das Mortes, que nascendo na Serra da Conceição (denominação local da Serra da Mantiqueira), a 1.200 metros de altitude, município de Santa Bárbara do Tugúrio, flui em sentido geral leste-oeste, indo desaguar na margem direita do Rio Grande, formador do Paraná, após o percurso total de 270km. Corta a microrregião de uma ponta a outra. Para ele convergem muitos outros rios menores, a saber: margem direita - Rio Carandaí, Rio Santo Antônio, Rio do Peixe, Rio Pirapitinga; margem esquerda - Rio Elvas e Rio das Mortes Pequeno. Além disto há muitos córregos, riachos, fios d’água. GUIMARÃES (1988) estudou magnificamente o assunto. Em São João del-Rei o destaque é para o Córrego do Lenheiro que atravessa a cidade de um extremo ao outro. O Lenheiro faz parte ativa de nossa história. Para ele convergem vários regatos. Outro destaque é o Ribeirão da Água Limpa que atravessa o Bairro de Matosinhos e capta as águas do Lenheiro.

Notas e Créditos


* Texto e foto: Ulisses Passarelli

[1] - Wikipedia, 18/04/2012.

Rudimentos etnográficos: os amerabas

A área do médio Rio das Mortes, onde está situada São João del-Rei era habitada por índios cataguás, puris e coroados.

Os cataguás eram os mais bravios, da vasta etnia cariri, descendentes da longínqua tribo dos tremembés (ou teremembés), que vindos em migração do Ceará, habitantes que eram do Vale do Jaguaribe, dividiram-se em duas grandes hordas: uma subiu o Rio São Francisco até as cabeceiras, a outra desceu o Rio Parnaíba até a foz. Narra Diogo de Vasconcelos, que os dois grupos, já desirmanados, encontraram-se no vale do Rio Grande ou Paraná [1]:

Travada aí a luta pela posse do rio decidiu-se na barra do Sapucaí. Os vencidos transpondo então a Mantiqueira foram se instalar na chã do Paraíba, cerca de Taubaté, e os vencedores ficaram na terra conquistada, de onde se estenderam até o Rio das Mortes, com o nome enfático de “catu-auá” (gente boa). Na guerra os índios chamavam-se a si catu-auá e os inimigos “pixuauá” (gente ruim). Daí os cataguá (p.125).

Explica GUIMARÃES (1987), que tais índios guerreiros foram um empecilho à livre entrada do dominador branco nessa região. Batalhas teriam ocorrido nas margens do nosso Rio das Mortes [2].  Deixaram muitas marcas inclusive na toponímia [3].

Lembra ainda este autor que o nome de Minas Gerais no fim do século XVII e princípio do XVIII os referenciava: “País dos Cataguá”, “Campos Gerais dos Cataguá”, “Minas dos Cataguá”.

SENNA (1905) comentou sobre eles:

Cataguás - Nome de bellicosa nação selvagem com que primeiro se enfretaram os Paulistas, ao descobrirem o territorio das Minas, desde o Sul ao Centro e Oéste, na vasta bacia fluvial do Rio Grande, tendo sido afinal completamente batidos pela bandeira de Lourenço Castanho, o Velho [4].

Coroados e puris pertencem à etnia tupi e mantinham hostilidades entre si. São originários dos goitacases (ou uetacás), do norte fluminense, região de Campos, foz do Paraíba do Sul. Quando da invasão portuguesa foram de lá expulsos [5].  Debandaram-se e se dividiram em vários agrupamentos que foram sendo cognominados como hordas próprias: araris, pitas, chumetos, tampruns, sararicões, coroados (epíteto dado pelos brancos, em razão do penteado que adotavam) e puris (termo depreciativo que os coroados lhes davam, significando audaz ou bandido) [6].   

TJADER (2004) esclarece que os goitacases, depois de longa luta contra os portugueses na região de Campos, foram expulsos e seguiram para o interior, “em direção aos rios Muriaé, Pomba e Paraibuna, acabando por se miscigenarem aos índios coropós, habitantes daquelas áreas (...) Esta miscigenação foi a origem da tribo dos coroados. Acerca dos puris informa que os tamoios do Rio de Janeiro e Parati, em debandada até o médio Paraíba do Sul, o transpuseram para a outra margem e então, no decurso do século XVII e no seguinte, entraram em choque com os coroados, posto que invadiram suas terras, “dando origem a novas tribos que se formaram, tais como a dos araris, a dos puris, todas lutando entre si mas igualmente todas tementes aos coroados (p.24-25) [7].                  

Além do branco invasor, aqui se fixando a partir da última década do século XVII, vindo nas bandeiras ávidas por preciosidades minerais, preadoras de índios, pelo “Caminho Geral do Sertão”, vieram os negros, com a descoberta local do ouro nos primeiros anos dos setecentos, para o árduo trabalho nas minas. Já em 1708, São João del-Rei abrigava a “Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos”, como se chamava então. Predominaram os negros do grande grupo banto, embora tenham também vindo sudaneses (destacando os negros minas) e malês (muçulmanos), estes em menor número. 

A mistura racial foi óbvia, a exemplo do restante do país e foi na mestiçagem entre si e com o elemento branco, que se fixaram muitas de nossas tradições, forjando a riqueza cultural que ainda nos é característica. 

Notas e Créditos 

* Texto: Ulisses Passarelli



[1] - VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. 4. ed. v.1. [s.d.]
[2] - Testemunhou Bernardo Xavier Pinto e Souza numa memória escrita nos meados do século XIX, intitulada “Vila de São João del-Rei - Cabeça da Comarca do Rio das Mortes”: “Descobrindo Tomé Portes del-Rei, taubateano essas minas maravilhosas, não só pela abundância de faisqueiras ricas, mas pela facilidade com que se extraia o ouro; procedeu daí, que os indígenas do país opondo-se à bandeira dos novos povoadores paulistas, defendendo-lhes os trabalhos de mineração, se armaram contra eles; por cujo fato sofreram uns e outros os efeitos de uma batalha renhida.” In: Revista do Arquivo Público Mineiro, ano 13, p. 588.  Aureliano Pereira Corrêa Pimentel, no “Município de São João del-Rei”, de 1905, corrobora esta afirmação: “Os indígenas ribeirinhos do Rio das Mortes logo se opuseram aos aventureiros paulistas, e com eles travaram pelejas.” In: Revista do Arquivo Publico Mineiro, ano 10, f.1 e 2, p.7 (apud Geraldo Guimarães).
[3] - Registra-se na região de Lagoa Dourada e Entre Rios de Minas a designação de Cataguá e suas variantes: Fazenda de Catauá, Córrego dos Cataguases, Córrego do Cataguá ... e finalmente o arraial de Catauá, no município de Lagoa Dourada. Também Santana dos Montes, antigo distrito do município de Conselheiro Lafaiete, de 1943 a 1948, teve a denominação de Catauá.
[4] - Lourenço Castanho Taques viajava rumo a Goiás à procura de ouro. Derrotou os índios no lugar chamado Conquista e os perseguiu até os Sertões de Araxá. Daí seguiu rumo ao Rio Paracatu, junto ao qual fundou a cidade homônima.
[5] - Segundo Saint-Hilaire, a diáspora dos goitacases se deu em 1630.
[6] - Esclarece-nos Jean Baptiste Debret que insatisfeitos com o apelido, tais índios retrucavam contra os coroados, dizendo que eles é que eram puris.
[7]  - TJADER, Rogério da Silva. Visconde do Rio Preto: sua vida, sua obra, o esplendor de Valença. Valença: PC Duboc, 2004. p.24-5.  

Um passeio histórico pelo Bairro de Matosinhos

Esboço Histórico Básico 

Toda esta vastidão territorial era dominada pelos aborígenes. Alargando suas velhas trilhas de caçada e migração e abrindo sobre elas e ao seu redor novas picadas, vieram as bandeiras, armadas até aos dentes, de bacamartes e arcabuzes, trabucos, pistolas, facas, facões, espadas, machados, foices, adentrando o imenso e ermo sertão, numa avidez assaz doentia por preciosidades minerais e pela preação de índios.

Os bandeirantes vinham sobretudo de São Paulo. O posto avançado de partida era Taubaté, no vale do Rio Paraíba do Sul. De São Paulo, passavam pelo Rio Tietê (rumo à montante), ganhando um afluente do Paraíba, que era subido de barco até as cachoeiras (Cachoeira Paulista). Daí, por terra, em curta marcha, se chegava a Taubaté. Aí também vinha dar um caminho, procedente de Parati, via Serra do Mar. Por navegação marítima se atingia o Rio de Janeiro a partir de Parati. De Taubaté o caminho se direcionava ao imenso paredão da Serra da Mantiqueira, divisa natural de Minas e São Paulo, qual uma muralha. Transpunham-na por uma bocaina, a Garganta do Embaú. Subindo pelo ermo sem fim, adentravam o continente, cruzavam as cabeceiras do Rio Verde (afluente do Grande, no sul de Minas Gerais) e chegavam ao Rio das Mortes, margem esquerda. Aí foi fundada a primeira feitoria, Ibituruna [1].

Rumando para o leste, ao longo do rio, subiam até um ponto de travessia a cerca de 12 léguas, justamente situada nos arredores do atual Bairro de Matosinhos, local chamado mais tarde Porto Real da Passagem [2]. Do outro lado do rio, seguia o velhíssimo caminho rumo ao vale do Rio das Velhas e mais além, ao Jequitinhonha. Foi trilhadíssimo, com as descobertas auríferas. Tal estrada primitiva era chamada “Caminho Geral do Sertão”, sertão esse chamado “dos Cataguases”, “País dos Cataguases” e “Minas dos Cataguases”, primeiros nomes de nosso estado.

A primeira expedição que percorreu esse itinerário, foi a liderada por Fernão Dias Paes, em 1674, chamada “Bandeira das Esmeraldas”, pois buscava uma mina dessas pedras, encontrada no vale do Jequitinhonha, na segunda década do século XVII, por Marcos de Azeredo Coutinho, que a descobriu vindo do litoral, acompanhando o vale do Rio Doce, rumo leste, na altura do Rio São Mateus (que corta o norte do estado do Espírito Santo)  [3].

As tribos dispostas em seus caminhos eram no geral destruídas, saqueadas, muitos e muitos amerabas eram assassinados, outros levados prisioneiros e feitos escravos; mulheres estupradas; aldeias incendiadas. A aproximação quando era pacífica destruía-os de outra forma – pela aculturação gradativa. Assim, essas expedições de paulistas vinham sempre com muitos indíos em estado de servidão, acompanhando-os. Os paulistas em maioria eram mestiços, mamelucos no geral.

Desde então, outros grupos de aventureiros fizeram tais viagens, que se acentuaram com a descoberta das minas, situadas na região das atuais cidades de Sabará, Ouro Preto e Mariana.

Ao longo dos caminhos estabeleceram-se feitorias e arraiais.

Vários autores aceitam que nos últimos anos do século XVII, em data incerta, estabeleceu-se um paulista taubateano de nome Tomé Portes del-Rei [4] nas margens do Rio das Mortes, no ponto onde se fazia sua travessia, local conhecido como Porto. Por ali passavam obrigatoriamente todos que iam e vinham das minas das cabeceiras do Rio das Velhas. Fundou uma espécie de estalagem, que era também fonte de abastecimento de víveres, para a longa e inóspita viagem. A história não registrou, mas foi certamente também nesse lugar, o centro de informações dos mais importantes para os viajantes sobre as condições da trilhada para diante.

Conquistada a confiança, firmado o respeito por seu nome, em 1701 [5] foi nomeado guarda-mor, a primeira autoridade local. Como tal era responsável pela cobrança do pedágio para travessia do rio por meio de canoas, que estavam sob sua responsabilidade. Essa taxa era em parte tributada à coroa portuguesa, donde o nome do lugar ter sido Porto Real da Passagem, situado na área do atual Matosinhos a apenas 1 km de onde seria mais tarde construída a igreja. O Porto foi indubitavelmente o primeiro núcleo de povoação.

Cabia ainda ao guarda-mor a tarefa de repartir as datas, isto é, lotes nos terrenos de mineração, controlando assim a exploração desordenada daquela riqueza mineral. Eis que se deduz, tal função estratégica não seria conferida a um estranho qualquer, forasteiro recém-chegado. Naturalmente precisou primeiro tornar-se confiável no lugar. Exceção feita à possibilidade ainda não registrada de já ter vindo de Taubaté com a função de guarda-mor, ou seja, nomeado e transferido para seu posto avançado de trabalho. Tomé Portes foi portanto o primeiro morador fixo, o primeiro comerciante e a primeira autoridade.

Em 1702, o minerador taubateano João de Siqueira Afonso, descobriu nas areias ribeirinhas sinais da presença de ouro no Ribeirão Santo Antônio, distante uma légua e pouco a leste do Porto, do outro lado do rio. A notícia espalhou-se rapidamente e para lá acorreram muitos, na esperança de enriquecer. Logo surgiu um arraial e coube a Tomé Portes como autoridade, fundá-lo e dividir as datas. Foi chamado Arraial de Santo Antônio, origem da atual cidade de Tiradentes.

Pouco depois, Tomé Portes foi assassinado por alguns escravos. Seus demais escravos vingaram-lhe a morte, matando os assassinos. Assume a guarda-moria o seu genro, Antônio Garcia da Cunha. A viúva retorna para Taubaté, vindo a falecer em 1728.

No ano de 1703, começaram a edificar no Porto Real da Passagem uma igreja, que se consagraria a Nossa Senhora do Pilar e serviria de matriz.

Em 1704 é a vez de dois descobertos auríferos: um no Ribeirão São Francisco Xavier (a cerca de uma légua ou pouco mais a oeste do Porto) e outro na vertente de um morro, na encosta de uma serra. Descobriram-lhes, respectivamente, o paulista Lourenço da Costa e o português Manuel João de Barcelos. O primeiro era negro forro e escrivão de datas do referido Antônio Garcia da Cunha. Foi o fundador da Irmandade do Rosário (1708), nosso mais antigo sodalício religioso. Também rapidamente se reuniram mineradores. Ali fundou-se um terceiro povoamento, o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar. Dito “novo” em confrontação ao de Santo Antônio, que ficou desde então cognominado “Arraial Velho. 

Com esses descobertos, um grande fluxo de aventureiros era visto em deslocamento para a região, no sonho de enriquecer. Os três arraiais desse eldorado cresceram rapidamente: o Porto, o Velho e o Novo.

Nesse novo arraial, logo erigiram uma ermida rústica de pau-a-pique, coberta de sapé, consagrada à Virgem do Pilar, cuja imagem primitiva, até hoje existe, como se pode ver na sua atual catedral basílica. A dita ermida, feita de improviso, substituiu o projeto daquela outra de 1703, que se estava fazendo no Porto e assim ficou inacabada.

Os paulistas dominavam as maiores e melhores minas, com uma certa violência. Os não-paulistas, coletivamente chamados Emboabas (portugueses, baianos, fluminenses, etc.), também defendendo seu quinhão, logo entraram em atrito, resultando numa desavença armada, chamada “Guerra dos Emboabas”, entre os anos de 1707 e 1709 [6].

Os Emboabas estavam arranchados junto às minas (situadas no atual Alto das Mercês, em São João del-Rei). Os paulistas ergueram moradas mais distantes.

Durante um dos episódios tensos da contenda, a capelinha do Alto das Mercês foi queimada. Finalizada a refrega, afastados os paulistas, nova capela foi erguida, com a mesma devoção, dessa vez, ao que parece, onde era o acampamento dos paulistas, que levaram a pior na peleja. Presumivelmente ficava no Bonfim. Há quem afirme que esta outra capela já existia mesmo antes da guerra, mas parece pouco provável.

Após a guerra foi edificada uma fortificação pentagonal no Porto Real da Passagem com o temor de qualquer recidiva e naturalmente melhor defesa contra o tráfico mineral.

O Arraial Novo de N.S. do Pilar foi elevado a vila em 1713, com o nome de São João del-Rei, por ato de Dom Brás Baltasar da Silveira. O nome escolhido homenageava o Rei Dom João V, de Portugal. No ano seguinte uma ordem obriga os moradores do Porto a se mudarem para essa nova vila. O Porto cai então no abandono.

O século XVIII prossegue na febre do ouro. Tudo gira em torno do minério nobilíssimo. Novas jazidas são descobertas, mais caminhos abertos e ao seu comprimento surgem fazendas e tantas povoações. Os índios rareando; os negros aumentando, trazidos em sucessivas levas para a escravidão. Só na Mina do Barro Vermelho (atual Rua Cel. Tamarindo) foram cerca de mil, ocupados na dura servidão.  

O último quartel desse século sentiu fortemente a decadência da exploração aurífera. Muitas vilas e arraiais desse período se estagnaram. São João del-Rei porém enveredou pela pecuária e agricultura de subsistência, mas sobretudo no comércio. Foi nessa época que se ergueu num platô, a apenas um quilômetro do velho Porto, uma capela sob a invocação do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, devoção de procedência portuguesa. Ali surgiu animada festa em Pentecostes, já numa economia urbana, embora guardasse em si, muitos elementos rurais. Desse festejo se ocupará este livro.

A centúria seguinte, esgotado o ouro, foi a vez do comércio ganhar vigor. São João tornou-se grande entreposto comercial da rota Rio de Janeiro – Sertão (centro-oeste e oeste de Minas), além de outras regiões mais longínquas.

Em 1838 a vila de São João del-Rei foi elevada à cidade. Por esse tempo Matosinhos firmou-se como um arraial pitoresco, aprazível, bucólico, cheio de chácaras grandiosas, com pomares afamados. Muitos procuravam esse lugar para cuidar da saúde, graças a sua tranqüilidade e pureza ambiental.

Terminando o século XIX, chega a estrada de ferro e também as primeiras indústrias, que caracterizariam o século XX até seus meados. O fim da escravidão tenebrosa nos traz o italiano, tantas e tantas famílias, estabelecidas em colônias nas vargens beira-rio: Marçal, Briguenthi, Bengo, Recondengo, José Teodoro, Felizardo e ainda, o Fé, mais retirado e o povoado do Barreiro. Dedicaram-se à agricultura. A seguir diversos italianos se estabelecem também na cidade.

Depois chegam migrantes libaneses, sírios, turcos, árabes, entregando-se ao comércio.

Em meados do século XX, Matosinhos muda de cara: as chácaras desaparecem, sendo loteadas. Crescem moradas e indústrias. No fim do século o bairro já é o maior da cidade, em verdadeira explosão demográfica nos últimos vinte anos. A indústria fraquejou. O comércio cresceu e com ele a prestação de serviços. Os velhos casarões foram derrubados. A igrejinha bicentenária também. O bairro se agigantou. BARREIROS (1976) teve essa impressão: “já na margem esquerda, um pouco distante do rio, floresceu um famoso bairro de São João del-Rei e que se denomina Matozinhos”.

O século XXI chega com a bússola apontando para a atividade turística, que não se desenvolverá por milagre, mas só com muito trabalho em seu favor.

Em resumo e finalizando o tópico, pode-se assim organizar nossa cronologia básica, numa sinopse didática, tantas vezes confundida e polemizada:

-      1701: Tomé Portes del-Rei, já previamente estabelecido no Porto Real da Passagem desde data incerta é nomeado guarda-mor. Fundou ali o primeiro núcleo populacional;
-         1702: morte de Tomé Portes del-Rei;
-     1704: descoberta de ouro no ribeiro chamado São Francisco Xavier e em seguida no atual Alto das Mercês;
-          1705: fundação do Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar, por Antônio Garcia da Cunha;
-          1713: o arraial supracitado é elevado à vila, ocasião que recebe o nome de São João del-Rei;
-          1838: a Vila de São João del-Rei é elevada à cidade.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli



[1] - A fundação de Ibituruna nessa época é contestada por certos estudiosos, dentre os quais, Geraldo Guimarães.
[2] - Esse itinerário também é contestado por alguns historiadores, que consideram que o rio teria sido transposto em Ibituruna e só na volta do Tripuí (região de Ouro Preto-Mariana), onde foi descoberto farto ouro, é que teriam passado pelo Porto Real da Passagem e por conseguinte, então sim, fundado aquele primitivo núcleo habitacional, gérmen de São João del-Rei, no território do atual Matosinhos. A respeito dessa interpretação ver HENRIQUES (2003).
[3] - A Bandeira das Esmeraldas não foi a primeira a entrar em Minas, mas a primeira que trilhou todo o chamado Caminho Geral do Sertão. Não seria absurdo afirmar que esse caminho foi aberto ou inaugurado pela gente de Fernão Dias. Antes dela, houve: em 1601 a bandeira de André de Leão, que atingindo o Rio Verde no sul de Minas, tomou rumo noroeste, passando pelos rios Grande e Jacaré, até um rio das cabeceiras do São Francisco; em 1611, Diogo Gonçalo Laço, pelo sul de Minas; em 1646, Felix Jaques, que também explorou o sul mineiro.
[4] - Filho do português João Portes del-Rei e da Sra. Juliana Antunes. Casou-se com Juliana de Oliveira.  Para maiores dados sobre a família de Tomé e sua participação na história local ver: Origens históricas de São João del-Rei. Org. André Dangelo. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2006.
[5] - Por se tratar de assunto complexo, friso, que essa data, 1701, é confirmada ou repetida, por vários autores, todos referenciados na bibliografia: Geraldo Guimarães, José Cláudio Henriques, José Bellini dos Santos, Paulo Cristófaro & Gentil Palhares, Luís de Melo Alvarenga, Osvaldo Santiago Lobosque, Altivo Lemos Sette Câmara (apoiado em Basílio de Magalhães – Manual de História do Brasil), José Bernardo Ortiz, Eduardo Canabrava Barreiros. A mesma data também surge na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 1959. V.27, Minas Gerais, R-Z. Verbete: São João del Rei.
[6]  - Um estudo notório dessa contenda foi efetuado por Eduardo Canabrava Barreiros, Episódios da Guerra dos Emboabas e sua Geografia, Ed. Itatiaia (BH) / USP (S.P), 1984. 

Breves comentários sobre Tomé Portes del-Rei

Faço absoluta questão de ser bastante subjetivo neste tópico.

É preciso reabilitar a figura de Tomé Portes del-Rei pela importância que teve como pioneiro. Fundou o primeiro núcleo habitacional, o Porto Real da Passagem. Dali partiram as expedições que encontraram ouro em derredor. Era ali o trampolim, o QG.

Tomé era fazendeiro, profissão a que já se dedicava em sua terra natal, onde deixou rica propriedade sob os cuidados do filho. Quando recebeu em hospedagem o conterrâneo João de Siqueira Afonso, este, que não era fazendeiro, mas sim, experiente minerador, que a pouco descobrira fartura de ouro no Tripuí (entre Ouro Preto e Mariana) e no Guarapiranga (atual Piranga, na Zona da Mata), ao ver as areias ribeirinhas, notou nelas semelhança mineral com aquelas das zonas onde encontrara ouro. Deixou a Tomé Portes a referência do ribeiro que descia a serra e ali este achou o nobre metal. Daí se afirmar que foi o fundador de Tiradentes porque esse fluxo d’água é decerto o Ribeirão Santo Antônio, que corta aquela cidade.

Ora, eis aí um equívoco, que de tão repetido passou por verdade e fixou-se como tal.

João de Siqueira Afonso não poderia fundar nada, nem povoado, nem arraial, nem vila, nem cidade, porque não tinha qualquer autoridade para isso diante do rei. Era uma espécie de empreiteiro, ocupado em garimpar com sua gente aqui e ali à procura de riquezas, sem compromisso com lugar algum. Ele pode e deve ser considerado como DESCOBRIDOR do ouro tiradentino. Era enfim um garimpeiro profissional. Tomé é o FUNDADOR, pois só ele como guarda-mor tinha autoridade diante da realeza para dividir os lotes de mineração (datas), noticiar oficialmente ao governador, fundar o núcleo habitacional. Não se deve confundir os conceitos. Os dois tiveram seu papel preponderante na história mas não se pode atribuir a um o papel de outro. Descobridor é quem descobre; fundador é quem funda por ter autoridade para tal.

De forma semelhante, em São João del-Rei, concordo que Antônio Garcia da Cunha seja o fundador do Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar, pois que o fato se deu em 1705 e ele nessa ocasião era o guarda-mor, substituindo Tomé Portes, seu sogro, que morrera cerca de três anos antes. Ora, está claro que se ele não tivesse morrido teria sido o fundador deste arraial também. Seja como for é indubitável que Tomé fundou o núcleo primevo (Porto). Mas ninguém por aqui fala que o fundador de São João seja Lourenço da Costa ou Manoel João de Barcelos, garimpeiros que encontraram o ouro são-joanense. Eles são considerados como o que de fato são, descobridores. Fundadores, nunca.

Ora, mas em minha opinião, se é que ela tem alguma utilidade esclarecedora e com o perdão dos ilustrados pesquisadores de ontem e hoje, o fato de Antônio Garcia da Cunha ter oficialmente fundado esse outro núcleo urbano – aquele que originou a atual urbe – não lhe garante o louro da vitória. Parece-me uma figura apagada, cujo feito foi-lhe rotulado, carimbado na testa e que ninguém poderá tirar, mas também não se poderá bater palmas. Sua fundação foi obra de uma circunstância (digo, o assassinato de Tomé Portes). O trabalho, a coragem desbravadora de deixar a fartura natal para conquistar um novo espaço, inclusive trazer família para cá, então um ermo, uma terra sem lei, todo o pioneirismo, são devidos ao arrojado Tomé Portes del-Rei e não a Antônio Garcia da Cunha. O núcleo do Porto foi o foco das expedições em derredor, o cordão umbilical e por conseguinte, aqueles arraiais primitivos entre Prados e São João del-Rei, estão pelo menos e sem nenhum favor sob seu patronato. Sim, Tomé é mais que fundador, é um PATRONO. Antônio Garcia da Cunha será sempre assim como Pedro Álvares Cabral ou Cristóvão Colombo, nomes que satisfazem uma história oficial nem sempre fiel à realidade. Na corrida da história levaram o título mas não foram os primeiros.

Com muita lucidez, Geraldo Guimarães (*) ensinou:

"Deste povoado (Porto Real da Passagem), com as consecutivas descobertas de ouro no vale do Rio das Mortes, originou-se a fundação de outros, alguns de vida efêmera, como Cuiabá e Ponta do Morro, outro decadente e absorvido, como o Córrego, e os Arraiais Velho e Novo, depois as duas vilas del-Rei, São José e São João. (p.72) (...) Sem dúvida, Tomé Portes del-Rei é figura principal na história primitiva de São João del-Rei." (p.73)


Área do Porto Real da Passagem (abaixo da via férrea), com terreno irregular, 
monturos, cascalheiras, escavações, valetas... vestígios de mineração? 

No mais era comum naquela época os povoamentos surgirem num lugar e mais tarde se transferirem para outro, a exemplo da própria Tiradentes cuja primeira capela foi beirando as minas, pras bandas do ribeirão ou do Canjica; Rio das Mortes, na velha igrejinha de Nhá Chica; São Miguel do Cajuru, começado no Cajuru Velho. Quando o feto está pronto e nasce o cordão umbilical não é mais necessário. Daí citada a ordem que os moradores se mudassem do Porto para o Arraial Novo. 

Pensada a história desta forma, José Cláudio Henriques andou por retos caminhos ao afirmar que Matosinhos é berço de São João del-Rei, haja vista que vista que o Porto fica nos seus limites. É fácil depreender então que nossa primeira vocação foi agrícola, logo interrompida e substituída pela garimpagem, que foi de fato, a que deixou marcas culturais, daí concordar que somos filhos do ciclo do ouro. 

Antônio Gaio Sobrinho numa de suas sempre memoráveis palestras considerou pré-história o período anterior a formação do arraial e história o período seguinte. 

A divisão didática é excelente. Apenas particularmente levo a data para 1701, já que é a referência mais recuada que dispomos. Não é uma data qualquer, mas aquela que nomeia uma autoridade para o lugar, denotando duas épocas: uma anterior, sem uma representatividade governamental, sem poder público; de outra, a partir da qual se inicia uma administração. Assim penso, até que alguém descubra um documento mais antigo ainda. Tudo o mais que pode ter ocorrido antes, foi informal e passageiro: migrações de tribos nômades ou suas incursões de caça e reconhecimento; passagens para lá ou para cá de bandeiras; instalação das primeiras moradias, roçados e criatórios, aqui e acolá. Isso foi nossa pré-história. 


Notas e Créditos

* In: Origens Históricas de São João del-Rei. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2006. 127p.
** Texto e foto (13/04/2014): Ulisses Passarelli

Matosinhos é com "s" ou com "z"?

Forma correta do nome do bairro

A maneira recomendada para se escrever o nome do bairro são-joanense de Matosinhos e o título devocional que lhe originou é com “s” no meio e no fim, à maneira da cidade portuguesa que lhe serviu de batismo: MATOSINHOS.

Hoje é comum ver-se o “s” intermediário substituído por “z”: "Matozinhos". 

Em Portugal, em tempos muito remotos, o topônimo veio de “Matesinus”, depois alterado em “Matusiny” e por fim no termo atual. Outra hipótese é que Matosinhos ou Matosinho possa ser diminutivo do nome ou sobrenome Matoso. 

Nos antigos jornais são-joanenses e em outros documentos, surgem as grafias: “Mattosinhos” (a mais comum), “Mathosinhos” e “Matthosinhos”, além das correspondentes com “z” e outras sem o “s” final. Todas tem um valor histórico mas não prático. A forma de uso é Matosinhos. Assim aparecerá em todo este blog.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Relações com a Inconfidência Mineira


            Ainda com respeito à história de Matosinhos, cumpre notar sua relação com a Inconfidência Mineira, assunto estudado por HENRIQUES (2003), que ora transcrevo:

Matosinhos também teve participação na Inconfidência Mineira, tanto é que o desembargador José Pedro Machado Coelho Torres e o ouvidor Marcelino Pereira Cleto ali estiveram a mando do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, dedicando um dia inteiro a inquirir pessoas suspeitas com o levante. Num dos casos, um pardo de nome Manoel da Costa Capanema, sapateiro, foi preso por insultar o jovem português Manoel Moreira que morava com a parda alforriada Josefa Teixeira. O sapateiro, na ânsia de tomar cachaça na taverna do português, por ocasião da festa do Divino Espírito Santo, não obteve sucesso, já que a mesma encontrava-se fechada. Aos brados e murros, já alcoolizado, Capanema passou aos insultos dizendo: “estes branquinhos do Reino que nos querem tomar nossas terras, cedo os haveremos de botar fora dela.” O sapateiro foi denunciado pelos que presenciaram o fato, entre eles o escrivão Antônio da Costa Braga e o Capitão Bernardo José Gomes da Silva Flores. Sendo inquirido pelo desembargador e ouvidor, foi preso em 22/09/1790. Foi, em 22/01/1791, remetido para o Rio de Janeiro em companhia de José Martins Borges e Vitoriano Gonçalvez Veloso. Finalmente foi absolvido, depois de mais de dois anos de prisão. Nesta mesma diligência foi ouvido Joaquim Pedro de Sousa Câmara, moço fidalgo da casa de sua majestade e sargento-mor da Cavalaria de Auxiliares da Comarca do Rio das Mortes e residente em Matosinhos. O assunto foi uma suposta carta enviada de Portugal por sua prima, Joana de Menezes e Valadares, alertando-o sobre um levante que haveria de acontecer nestas Minas Gerais. O assunto da referida carta foi ventilado pelo Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, num de seus depoimentos. Joaquim Pedro declarou que a intenção da missiva de sua prima tinha apenas intento de convencê-lo a regressar para a Corte, onde poderia viver com mais segurança ao lado de Sua Majestade. A carta foi enviada ao Governador Visconde de Barbacena e Joaquim Pedro não mais foi molestado pelas autoridades. Outro personagem envolvido na trama da Inconfidência Mineira e que posteriormente passou a residir em Matosinhos, onde faleceu, foi o célebre mestre de campo e grande potentado da época, Inácio Correa Pamplona. Era português, natural da Ilha Terceira. Vindo para o Brasil, estabeleceu-se nas Minas Gerais, fez grande fortuna, tornou-se latifundiário. (...) era amigo particular do Pe. Carlos Correia de Toledo, vigário da Vila de São José e, talvez por isto, chegou a se comprometer discretamente com a conjuração. Foi o terceiro delator da Inconfidência. No fim da vida, já bastante idoso e doente, a procura de mais fáceis recursos da medicina, adquiriu uma chácara em Matosinhos, onde veio falecer em 1810. (...) Outra moradora de Matosinhos relacionada indiretamente com a Inconfidência Mineira foi Maria Angélica de Sá Meneses, segunda esposa do Cel. Carlos José da Silva, escrivão da Junta Real da Fazenda, homem de confiança do Visconde de Barbacena e do vice-rei.

            No arquivo do Museu Regional do IPHAN, em São João del-Rei, existe uma carta [1], parte do testamento do coronel Pamplona, dirigida a seu filho sacerdote, padre Inácio Correia Pamplona Corte Real, datada de 21 de abril de 1810, assinada na sua chácara em Matosinhos, onde o próprio coronel sertanista revela que estava atormentado por visões espirituais, assombrações, barulhos, como que prenunciando sua morte. Veja-se por exemplo este trecho:

E quanto aos meus ouvidos e as representações de espetáculos que todas as horas se me representam, lhes não posso explicar. E eu as recebo por misericórdia e por aviso do céu. Sábado dia 14 pelas 9 horas da noite, entrou a tempestade nesta chácara, de sorte até se representavam serpentes de arrasto pelo sobrado, e até o dia de hoje 21 sábado de manhã tem os invisíveis continuado de noite e de dia e as horas que querem.
                  
        Pamplona ansioso, vendo fantasmas e pressentindo a morte, se despediu do filho, recomendando cautela com aqueles tais demônios.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli




[1] - Arquivada na caixa 100. Cópia da transcrição gentilmente cedida por Luís Antônio Sacramento Miranda.