quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Uma antiga subvenção

Há noventa anos um jornal de São João del-Rei revelava uma interessante notícia, pelo menos para os padrões daquela época: uma ajuda financeira às festividades no Bairro Matosinhos, mostrando que a prática do apoio municipal é antiga. Por outro lado também denota a importância do festejo para o município, alcançando o merecimento dessa benesse. 


Transcrição:

Resolução n.478, de 31 de março de 1923. Autoriza a auxiliar festividades e a adquirir um retrato a óleo. O povo do municipio de São João del-Rey, por seus representantes, decretou, e eu, em seu nome, sancciono a seguinte resolução: 
Art.1º - Fica o agente executivo autorizado a auxiliar, no corrente anno, com a quantia de 200$000 a cada uma, as festividades da Semana Santa e do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, realizadas no districto da cidade. (Etc.)

Créditos   

- Texto e fotomontagem: Ulisses Passarelli.

                                                                           Notas

- Referência hemerográfica: A Tribuna, n.468, 15/04/1923, São João del-Rei. 
- Acervo: Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
- Revisão: 27/03/2025

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Cruz Esquecida

Uma pequena cruz chantada no barranco da via férrea na curva "reversa" da Ferrovia Oeste de Minas, entre a estação de São João del-Rei e a de Chagas Dória, no Bairro Matosinhos, exatamente na junção das ruas Carlos Montuaneli com Bernardo Guimarães, imediações da Praça Pedro Paulo, marca o local de um acidente ferroviário acontecido há décadas.

Segundo a história oral, ali morreu uma pessoa atropelada pelo trem. Data, não se sabe; o nome perdeu-se no passado. A circunstância diluiu-se com os anos, mas a cruz ficou. Originalmente era uma cruz de madeira, mas apodrecida pela ação do tempo foi substituída por outra de ferro. Os ramos da corriola (Ipomoea), como planta trepadeira, sobem na peça religiosa e evocam a poesia de Castro Alves, "A Cruz da Estrada", que segue transcrita: 

Caminheiro que passas pela estrada,
seguindo pelo rumo do sertão,
quando vires a cruz abandonada
deixe-a dormir em paz na solidão!

Que vale o ramo do alecrim cheiroso
que lhe atiras nos braços ao passar?
Vai espantar o bando buliçoso
das borboletas que lá vão pousar. 

É de um escravo humilde sepultura.
Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Deixa-o dormir no leito de verdura, 
que o Senhor entre as selvas lhe compôs. 

Não precisa de ti. O gaturamo
geme por ele à tarde no sertão,
e a juriti, do taquaral no ramo, 
povoa, soluçando, a solidão. 

Dentre os braços da cruz, a parasita, 
num abraço de flores, se prendeu;
chora orvalhos a grama que palpita; 
acende, o vaga-lume,  o facho seu. 

Quando à noite o silêncio habita as matas, 
a sepultura fala a sós com Deus...
Prende-se a voz na boca das cascatas, 
e as asas de ouro aos astros lá do céu. 

Caminheiro! Do escravo desgraçado
o sono agora mesmo começou!
Não lhe toques o leito de noivado,
há pouco a liberdade o desposou. 

Esta, assim como outras cruzes de beira de caminho (ou cruz de estrada), marcam via de regra locais de tragédias: pessoas encontradas mortas por causas biológicas ou de assassinato, acidentes ou fatalidades impostas pela natureza. Removido o cadáver para um cemitério, o local se torna sacralizado por uma cruz ali fincada, como se fosse uma testemunha perene do fato, embora que silenciosa. Com muita frequência essas cruzes se tornam locais de culto popular, onde vão rezar, deixam imagens quebradas, lançam moedas ao passar, enfeitam de flores, acendem velas e depositam pedrinhas para marcar preces emanadas em sufrágio daquela alma. 

Passados muitos e muitos anos, por vezes a história se perde, mas a cruz continua; ou a narrativa real se mescla ao misticismo e surge a lenda. Chega um tempo que alguém relata ter alcançado uma benesse rezando ali. A notícia esparrama e mais devotos vem. A cruz ganha limpeza, pintura e às vezes até cobertura; sua popularidade aumenta e mais gente ganha graças. Surge um cercado, adro, nicho, como aconteceu com a Cruz da Cristina, no distrito são-joanense de São Gonçalo do Amarante. Não tarda transmutar-se em uma capelinha, como aconteceu com a Cruz da Moça, em Santa Rita do Ibitipoca. Mas se o milagre não vem, se a sociedade local muda, se outras religiões se expandem com suas próprias crenças, os velhos devotos falecem, os novos aos poucos vão se esquecendo daquela cruz da qual ficaram se referências identitárias. Cada dia menos gente vem ali rezar, posto que desprovida de pertencimento a ela. O mato toma conta; a corrosão chega. Um dia ela cai por terra e ninguém se habilita a erguer uma nova. Desaparece no plano físico, como aconteceu com a Cruz do Dunga, em santa Cruz de Minas. 

A cultura popular tem sua própria dinâmica transformadora, que pelas vias da aceitação coletiva e da funcionalidade, impõem o ocaso ou a sequência. 

Cruz à beira da ferrovia em Matosinhos

 Créditos

- Texto e fotografia: Ulisses Passarelli, 1998. 

                                                                               Notas

- Revisão e acréscimos: 16/04/2025. 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Dois Causos de Matosinhos


(Oferecimento: com gratidão a José Cláudio Henriques)  

           1- LUGAR ONDE O CACHORRO FALOU 

Dizem que fica na beira do Córrego da Água Limpa, limite do Grande Matosinhos. Logo se vê que foi um fato passado há muito tempo, quando suas águas ainda eram limpas... Lá pras bandas do lugar chamado Ouro Preto, onde os viajantes John Luccock e Robert Walsh comentaram no século XIX, de um velho dique – benfeitoria dos serviços de mineração de ouro – rompido pela força de uma enxurrada. Ali, na Fazenda Velha, diz que morou um rico senhor, dos mais miseráveis que já se viu.

      O ganancioso fazendeiro gostava de uma caçada e tinha seu cachorrinho fiel, que sofria de uma fome crônica, visível na sua magreza. Era pele e osso, como se diz.

      Certa feita o sovina caçou gordas codornas – seu prato predileto – e mandou uma escravizada cozinheira prepará-las. Mãe Maria as fazia como ninguém. Seu tempero dava água na boca. Serviu-lhe. Se lambuzava no comer, deliciando-se com o pitéu. E o pobre cão de caça, varado de fome, debaixo da mesa, babando, língua de fora, ofegante, olhos estatelados, rosnava de fome como que a implorar uma migalha, que o garrafinha recusava lhe dar. Não fosse Mãe Maria que vez por outra às escondidas lhe dava algo, já teria morrido à míngua. Nem sequer os ossos reservava ao cachorro. Guardava-os para torrar, moer e fazer farinha, que punha sobre o feijão. E o cão, vendo que nem sequer lhe restavam os ossos, arranjou voz e falou: “_ ô patrão: mas nem os ossos?”

      O homem desmaiou de susto. Acudiram. Ao acordar tratou fartamente do cão. Dizem que depois daquela lição inesperada melhorou de caráter, deixando de ser tão munheca para beneficiar os necessitados. E o local ficou conhecido como "O lugar onde o cachorro falou".

Confluência do Córrego do Cala-boca (direita da foto) no Ribeirão da Água Limpa (esquerda da foto), 
em cujas proximidades teria se passado a estória acima narrada. São João del-Rei/MG.  

     2 - O CALA-BOCA

Este é o curioso nome de um córrego que também limita o Grande Matosinhos. Deságua no Ribeirão da Água Limpa. Sua história ou estória está ligada a um triste assassinato. Foi nos idos da escravidão. Havia uma grande fazenda por lá, com muitos escravizados e dentre eles uma mulher de uma beleza primorosa. O senhor tinha por ela uma espécie de capricho, um xodó, desejando-a e abusava sexualmente dela, à força e sob ameaças.

O caso se arrastava há bom tempo, até que um dia a esposa do fazendeiro – a sinhá – descobriu a safadeza do marido, por meio da candonga de uma preta que não gostava da tal mulher preferida. Revoltada, não pensou duas vezes. Logo que o marido saiu a cavalo para resolver um negócio, chamou um feitor – mal como o diabo – mandou que ele levasse a escravizada para um grotão bem deserto e lá matasse a infeliz. E deu-lhe ordem de silêncio absoluto e que voltasse diante dela para informar o resultado. Assim foi feito.

A sinhá satisfeita e vingada diante do feitor, determinou-lhe que calasse a boca, sem jamais contar o fato. Do contrário, daria um jeito de eliminá-lo também.

Voltou o marido e já maquinando no caminho seus desejos secretos, foi logo à procura de satisfazer-se com a escravizada, como de costume. Não a encontrou. Mandou capatazes e feitores procurá-la. Viram os urubus na capoeira e lá acharam seu corpo. Forçou explicações com os empregados e notando o nervosismo do feitor assassino, arrancou-lhe na marra a confissão. Ele clamava que obedecera a uma ordem da patroa, que pedira para ele calar a boca sob pena de morte. Duplamente revoltado, contam, o sinhô deu uma surra na sinhá, ajuntou os seus pertences, pôs sobre um animal cargueiro e mandou devolver ao sogro. E como na briga de dois sempre lucra um terceiro, satanás foi quem ganhou... quatro almas: a do casal, a do feitor e a da delatora fofoqueira.

Placa na BR-265 nos arredores de São João del-Rei/MG. 

Créditos

- Pesquisa, texto e fotografias (2013): Ulisses Passarelli.
- Informante: Aluísio dos Santos (São João del-Rei/MG), 1999. 

Notas 

I- Pequeno glossário de termos populares vigentes em São João del-Rei e aproveitados no texto: 

- Candonga: africanismo banto, que significa fofoca, intriga, futrica, fuxico, mexerico, calúnia. 
- Capoeira: pequena mata. Floresta minúscula.
- Garrafinha: sovina, usurário, mesquinho. 
- Munheca: o mesmo que garrafinha. “Munheca de samambaia”.
- Pele e osso: expressão indicativa de extrema caquexia. Magreza.
- Urubu: abutre, ave catartídea que devora cadáveres. Carniceiro.
- Varado: "magro como se fosse uma vara"; magérrimo ou apenas com muita fome.
- Na marra: forçadamente; sob imposição. 
- Mal como o diabo: expressão que intensifica o adjetivo da maldade; muito mal; ruim em demasia. 

II-  Por uma gentileza do pesquisador e escritor são-joanense José Cláudio Henriques, este texto foi originalmente publicado no jornal: O Grande Matosinhos, n.13, nov.2000, São João del-Rei, ASMAT, p.2.

III- as notas de rodapé, as fotografias e o glossário não fazem parte da publicação original em jornal. 

IV- Sobre a rede fluvial do Bairro Matosinhos, leia também: ÁGUAS FLUVIAIS 

- Revisão: 03/06/2025.

                                              Referências bibliográficas

LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil: 1808-1818. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.

WALSH, Robert. Notícias do Brasil em 1829-1829. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985.