(Oferecimento: com gratidão a José Cláudio Henriques)
1- LUGAR ONDE O CACHORRO FALOU
Dizem que fica na beira
do Córrego da Água Limpa, limite do Grande Matosinhos. Logo se vê que foi um
fato passado há muito tempo, quando suas águas ainda eram limpas... Lá pras bandas
do lugar chamado Ouro Preto, onde os viajantes John Luccock e Robert Walsh comentaram
no século XIX, de um velho dique – benfeitoria dos serviços de mineração de
ouro – rompido pela força de uma enxurrada. Ali, na Fazenda Velha, diz que
morou um rico senhor, dos mais miseráveis que já se viu.
O
ganancioso fazendeiro gostava de uma caçada e tinha seu cachorrinho fiel, que
sofria de uma fome crônica, visível na sua magreza. Era pele e osso, como se diz.
Certa
feita o sovina caçou gordas codornas – seu prato predileto – e mandou uma
escravizada cozinheira prepará-las. Mãe Maria as fazia como ninguém. Seu tempero
dava água na boca. Serviu-lhe. Se lambuzava no comer, deliciando-se com o
pitéu. E o pobre cão de caça, varado
de fome, debaixo da mesa, babando, língua de fora, ofegante, olhos estatelados,
rosnava de fome como que a implorar uma migalha, que o garrafinha recusava lhe dar. Não fosse Mãe Maria que vez por outra
às escondidas lhe dava algo, já teria morrido à míngua. Nem sequer os ossos reservava ao cachorro. Guardava-os para torrar, moer e fazer farinha, que punha sobre o
feijão. E o cão, vendo que nem sequer lhe restavam os ossos, arranjou voz
e falou: “_ ô patrão: mas nem os ossos?”
O
homem desmaiou de susto. Acudiram. Ao acordar tratou fartamente do cão. Dizem
que depois daquela lição inesperada melhorou de caráter, deixando de ser tão munheca para beneficiar os necessitados.
E o local ficou conhecido como "O lugar onde o cachorro falou".
![]() |
Confluência do Córrego do Cala-boca (direita da foto) no Ribeirão da Água Limpa (esquerda da foto),
em cujas proximidades teria se passado a estória acima narrada. São João del-Rei/MG.
|
2 - O
CALA-BOCA
Este é o curioso nome de um córrego que também limita o Grande Matosinhos. Deságua no Ribeirão da Água Limpa. Sua história
ou estória está ligada a um triste assassinato. Foi nos idos da escravidão.
Havia uma grande fazenda por lá, com muitos escravizados e dentre eles uma mulher de uma beleza primorosa. O senhor tinha por ela uma espécie de capricho, um
xodó, desejando-a e abusava sexualmente dela, à força e sob ameaças.
O caso se arrastava há bom tempo, até
que um dia a esposa do fazendeiro – a sinhá – descobriu a safadeza do marido,
por meio da candonga de uma preta que
não gostava da tal mulher preferida. Revoltada, não pensou duas vezes. Logo que o marido
saiu a cavalo para resolver um negócio, chamou um feitor – mal como o diabo –
mandou que ele levasse a escravizada para um grotão bem deserto e lá matasse a
infeliz. E deu-lhe ordem de silêncio absoluto e que voltasse diante dela para
informar o resultado. Assim foi feito.
A sinhá satisfeita e vingada diante
do feitor, determinou-lhe que calasse a boca, sem jamais contar o fato. Do
contrário, daria um jeito de eliminá-lo também.
Voltou o marido e já maquinando no
caminho seus desejos secretos, foi logo à procura de satisfazer-se com a
escravizada, como de costume. Não a encontrou. Mandou capatazes e feitores procurá-la.
Viram os urubus na capoeira e lá acharam seu corpo. Forçou
explicações com os empregados e notando o nervosismo do feitor assassino,
arrancou-lhe na marra a confissão. Ele clamava que obedecera a uma ordem da patroa, que
pedira para ele calar a boca sob pena de morte. Duplamente revoltado, contam, o
sinhô deu uma surra na sinhá, ajuntou os seus pertences, pôs sobre um animal
cargueiro e mandou devolver ao sogro. E como na briga de dois sempre lucra um
terceiro, satanás foi quem ganhou... quatro almas: a do casal, a do feitor e a
da delatora fofoqueira.
![]() |
Placa na BR-265 nos arredores de São João del-Rei/MG. |
Créditos
- Pesquisa, texto e fotografias (2013): Ulisses Passarelli.
- Informante: Aluísio dos Santos (São João del-Rei/MG), 1999.
Notas
I- Pequeno glossário de termos populares vigentes em São João del-Rei e aproveitados no texto:
- Candonga: africanismo banto, que significa fofoca,
intriga, futrica, fuxico, mexerico, calúnia.
- Capoeira: pequena mata. Floresta minúscula.
- Garrafinha: sovina, usurário, mesquinho.
- Munheca: o mesmo que garrafinha. “Munheca de
samambaia”.
- Pele e osso: expressão indicativa de extrema
caquexia. Magreza.
- Urubu: abutre, ave catartídea que devora cadáveres. Carniceiro.
- Varado: "magro como se fosse uma vara"; magérrimo ou apenas com muita fome.
- Na marra: forçadamente; sob imposição.
- Mal como o diabo: expressão que intensifica o adjetivo da maldade; muito mal; ruim em demasia.
II- Por uma gentileza do pesquisador e escritor são-joanense José Cláudio Henriques, este texto foi originalmente publicado no jornal: O Grande Matosinhos, n.13, nov.2000, São João del-Rei, ASMAT, p.2.
III- as notas de rodapé, as fotografias e o glossário não fazem parte da publicação original em jornal.
- Revisão: 03/06/2025.
Referências bibliográficas
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil: 1808-1818. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.
WALSH, Robert. Notícias do Brasil em 1829-1829. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985.
Nenhum comentário:
Postar um comentário