Dizem que fica na beira
do Córrego da Água Limpa, limite do Grande Matosinhos. Logo se vê que foi um
fato passado a muito tempo, quando suas águas ainda eram limpas... Lá pras bandas
do lugar chamado Ouro Preto, onde os viajantes John Luccock[2]
e Robert Walsh[3] comentaram
no século XIX, de um velho dique – benfeitoria dos serviços de mineração de
ouro – rompido pela força de uma enxurrada. Ali, na Fazenda Velha, diz que
morou um rico senhor, dos mais miseráveis que já se viu.
O
ganancioso fazendeiro gostava de uma caçada e tinha seu cachorrinho fiel, que
sofria de uma fome crônica, visível na sua magreza. Era pele e osso, como se diz.
Certa
feita o sovina caçou gordas codornas – seu prato predileto – e mandou uma
escrava cozinheira prepará-las. Mãe Maria as fazia como ninguém. Seu tempero
dava água na boca. Serviu-lhe. Se lambusava no comer, deliciando-se com o
pitéu. E o pobre cão de caça, varado
de fome, debaixo da mesa, babando, língua de fora, ofegante, olhos estatelados,
rosnando de fome como que a implorar uma migalha, que o garrafinha recusava dar-lhe. Não fosse Mãe Maria que vez por outra
às escondidas lhe dava algo, já teria morrido à míngua. Nem sequer os ossos lhe
reservava. Guardava-os para torrar, moer e fazer farinha, que punha sobre o
feijão. E o cachorro, vendo que nem sequer lhe restavam os ossos, arranjou voz
e falou: “ô patrão... mas nem os ossos?”
O
homem desmaiou de susto. Acudiram. Ao acordar tratou fartamente do cão. Dizem
que depois daquela lição inesperada melhorou de caráter, deixando de ser tão munheca para beneficiar os necessitados.
E o local ficou conhecido como o lugar onde o cachorro falou.
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Confluência do Cala-boca (direita) no Água Limpa (esquerda)
em cujas proximidades teria se passado a estória acima narrada.
São João del-Rei/MG.
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2 - O
CALA-BOCA
Este é o curioso nome de um ribeirão
que também limita o Grande Matosinhos, desaguando no Água Limpa. Sua história
ou estória está ligada a um triste assassinato. Foi nos idos da escravidão.
Havia uma grande fazenda por lá, com muitos escravos e dentre eles uma mulata
de uma beleza primorosa. O senhor tinha por ela uma espécie de capricho, um
xodó, desejando-a e abusando sexualmente dela, à força e sob ameaças.
O caso se arrastava a bom tempo até
que um dia a esposa do fazendeiro – a sinhá – descobriu a safadeza do marido,
por meio da candonga de uma negra que
não gostava da tal mulata. Revoltada, não pensou duas vezes. Logo que o marido
saiu a cavalo para resolver um negócio, chamou um feitor – mal como o diabo –
mandou que ele levasse a escrava para um grotão bem deserto e lá matasse a
infeliz. E deu-lhe ordem de silêncio absoluto e que voltasse diante dela para
informar o resultado. Assim foi feito.
A sinhá satisfeita e vingada diante
do feitor determinou-lhe que calasse a boca sem jamais contar o fato. Do
contrário, daria um jeito de eliminá-lo também.
Voltou o marido e já maquinando no
caminho seus desejos secretos, foi logo à procura de satisfazer-se com a
escrava, como de costume. Não a encontrou. Mandou capatazes e feitores procurá-la.
Viram os urubus na capoeira e lá acharam seu corpo. Forçou
explicações com os empregados e notando o nervosismo do feitor assassino,
arrancou-lhe a confissão. Ele clamava que obedecera a uma ordem da patroa, que
pedira para ele calar a boca sob pena de morte. Duplamente revoltado, contam, o
sinhô deu uma surra na sinhá, ajuntou os seus pertences, pôs sobre um animal
cargueiro e mandou devolver ao sogro. E como na briga de dois sempre lucra um
terceiro, satanás foi quem ganhou... quatro almas: a do casal, a do feitor e a
da delatora fofoqueira.
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Placa na BR-265 nos arredores de São João del-Rei/MG. |
Pequeno Glossário
- Candonga: africanismo que significa fofoca,
intriga, futrica, fuxico, mexerico.
- Capoeira: pequena mata. Floresta minúscula.
- Garrafinha: sovina, usurário, mesquinho.
- Munheca: o mesmo que garrafinha. “Munheca de
samambaia”.
- Pele e osso: expressão indicativa de extrema
caquexia. Magreza.
- Urubu: abutre, ave catartídea que come
cadáveres, animais mortos. Carniceiro.
- Varado: magérrimo ou apenas com muita fome.
Notas e Créditos
*Obs.: as notas de rodapé, as fotografias e o glossário não fazem
parte da publicação original.
** Pesquisa, texto e fotos (2013): Ulisses Passarelli.
[1]
- Por cuja benesse foi publicado em: O Grande Matosinhos, n.13, nov.2000, São João del-Rei, ASMAT,
p.2.
[2]
- LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro
e partes Meridionais do Brasil: 1808-1818. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1975.
[3]
- WALSH, Robert. Notícias do Brasil em
1829-1829. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985.
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