A segunda fase diz respeito à dinâmica sócio-cultural que impulsiona a sociedade e que é fundamental ao folclore: a contínua renovação, sem a qual a cultura se cristaliza, caduca mesmo, com aquele anacronismo inviável com os novos tempos. Basta dizer que uma folia do século XIX, tem os elementos básicos de uma do século XXI, mas esta tem peculiaridades que a discernem daquela. Assim com o congado e qualquer manifestação folclórica antiga. Há uma adaptação que põe o conjunto todo em sintonia.
Com a globalização, muitos folcloristas lançaram sobre as manifestações folclóricas, um agouro apocalíptico como se fosse aquele o fim de todo o folclore. Após o baque inicial ele se adaptou à nova realidade e está aí, qual fator de resistência cultural.
A própria religião – basta estudá-la – apresentou infinitas mudanças e a hegemonia católica não é a mesma[2]. A forma de se catequizar e de se relacionarem fiéis X Igreja continua em franca e positiva mudança.
O bairro onde se realiza a festividade mudou de forma incomensurável em todos os aspectos, ou seja, o ambiente das comemorações foi alterado.
Mais de duzentos e trinta anos de diferença numa sociedade imprimem nela mudanças profundas na economia, nos hábitos, nas relações sociais e eclesiásticas, nas diversões, etc. Se a festa contemporânea fosse igual àquela imperial, não seria espontânea mas uma encenação, uma representação por artistas treinados para aquilo. Não haveria uma participação vivenciada de fiéis, que estariam tolhidos de sua criatividade, apenas assistindo e arremedando o festejo à antiga [3].
Desta sorte a festa setecentista e oitocentista serviu à atual de roteiro orientador, sobre o qual, uma nova história foi escrita. Os elementos se assemelham mas felizmente nunca se igualam. A continuidade é espiritual e não histórica. O que passou, passou, como um dia o modelo atual passará para se adequar a novas mentes.
Tendo isto como diretriz, a palavra “resgate” tem o seu valor duvidoso. Se fosse de fato um resgate no sentido etimológico, a festa de hoje teria sido recuperada do passado tal como era. Isto seria um resgate verdadeiro. E como ela era? Tudo que sabemos está contido nos velhos jornais, mas será que isto é suficiente para ter-se dela a exata visão? Com toda a melhoria da imprensa, ainda hoje uma matéria jornalística, por mais bem escrita que seja, não consegue de forma perspicaz, captar a essência festiva. Traça-lhe no máximo um panorama, descreve elementos gerais. Assim o resgate é impossível, senão aproximado a nível de encenação, mas não do lado religioso, formal e informal.
Em conversa informal a esse respeito (em 30/05/2008), o professor Antônio Gaio Sobrinho manifestou opinião harmônica com este pensamento ao afirmar que o resgate era relativo, dada a extemporaneidade da festa que hoje vemos. A festa foi sim reativada, ou melhor, remodelada, palavra preferencial. Resgatada, não. Por isto o termo resgate embora usual, merece estar entre aspas. Tirem do jubileu o Imperador Perpétuo, o Imperador móvel, destituam a devoção ao Paráclito por outra, extirpem seu colorido, musicalidade e espontaneidade, a fartura alimentar e a alegria, seu coreto, introduzam cenógrafos e coreógrafos ordenando ambiente e danças e o terão descaracterizado por completo.
Nesses parâmetros, vencidas as divergências, calcou a Comissão do Divino seu trabalho cujo resultado aí está, num êxito evidente, fruto de profundo esforço, pesquisa, boa vontade, empenho, abnegação, lealdade à causa, fé, honestidade e trabalho de equipe. Este foi o impulso inicial.
Perscrutando as folhas dos jornais, nota-se que as notícias acerca da festividade antiga repisavam sobre alguns assuntos. Esses elementos compunham o esqueleto da festa, seu arcabouço ou estrutura básica, que, respeitadas as atualizações, persistem ainda hoje, na medida do possível e do que permite a coerência. Outros elementos apareciam mas eram ocasionais, ou, se preferirem, incidentais.
Para corroborar essa diretriz adotada pelos festeiros, vale mencionar o seguinte pensamento, atribuído ao líder pacifista e religioso indiano Mahatma Gandhi: “se queres progredir não deves repetir a história, mas fazer uma história nova.” Outrossim, compensa destacar as observações de MENDES (2001):
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| Café da manhã ofertado aos congadeiros na Festa do Divino. |
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e culturas popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: FAPESP, 1999. Col. Histórias do Brasil.
MENDES, Hélder Fonseca. Festas do Espírito Santo nos Açores: proposta para uma leitura teológico-pastoral. Angra do Heroísmo: Inst. Açoriano de Cultura/Santa Casa da Misericórdia, 2001.
-Fotografia: Iago C.S.Passarelli, 2012.

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