Muitas
festas populares e religiosas encerram suas atividades devido à decadência,
enfraquecimento gradativo dos componentes festivos, alterações sociais,
dissoluções comunitárias. Definitivamente não foi o que aconteceu com a de
Matosinhos [1].
No
tempo em que foi proibida era gigantesca, capaz de esvaziar a cidade e lotar o
arraial. Milhares e milhares de pessoas vinham de toda a redondeza participar.
Não havia decadência mas sim um aspecto diferente daquele dos tempos mais
antigos. O lado profano, reduzido ao jogo, sobrepunha-se desconcertante ao lado
religioso, tão subtraído que fora, que já não passava de pretexto oficial à
realização da festa. Disfarce, como disse um jornal.
Mas
aconteceu em abril de 1923, na cidade de Juiz de Fora / MG, a Conferência
Episcopal da Província de Mariana. Das resoluções tomadas, as de nº 15 e 16
diziam respeito exatamente aos jogos em festas de igreja e serviram de
justificativa para a paralisação dos festejos no ano seguinte. Senão, vejamos
um texto a propósito, intitulado “Festa de Mattosinhos” [2]
:
Não poucos commentarios tem merecido o facto de não se realizarem este
anno, os idolatrados festejos de Mattosinhos. Não só em palestras: tambem
alguns jornaes já se hão occupado do momentoso assumpto, uns com applausos com
censuras e cerimonias outros... Poderiamos, sem esforço e com segurança,
mostrar a sem razão dos que, não sabendo ou não querendo pesar os motivos da
privação, chegam ao excesso, que lastimamos, de se referir com pouca reverencia
ás auctoridades responsaveis no caso em apreço. Abstemo-nos entretanto, de
qualquer argumentação. Melhor: resumimo-la na citação que vamos fazer de dois
artigos (15 e 16) das “Resoluções”, approvadas nas conferencias episcopaes da
Provincia de Marianna, realizadas em Juiz de Fora, em abril de 1923:
“Prohibimos em absoluto (o grypho é nosso) os bailes em
beneficio de instituições catholicas, bem como outras festas de beneficio com
jogos de azar ou divertimentos de moralidade duvidosa.
Prohibimos igualmente as festas religiosas, com jogos a dinheiro,
nas praças ou em quaesquer lugares franqueados ao povo (é ainda nosso o
grypho), determinando aos Rev. Vigários que recorram ás auctoridades, e, no
caso de nada conseguirem, suspendam immediatamente os actos do culto, seja na
sede da parochia, seja em capellas.” [3]
São claros... Quereriam os amigos da festa de Mattosinhos que o sr. D.
Helvécio revogasse (e por amor de quê?!) o que ficou taxativamente resolvido?
Realmente o caso deu margem
e extensas brigas, encabeçadas de um lado pelo Monsenhor Gustavo Ernesto Coelho
(pároco e vigário forâneo) e Frei Cândido Wroomans, OFM, pelo jornal Acção Social (digamos, contrário à festa), e de outro, pelo Professor Bento
Ernesto Júnior [4],
pelo jornal A Tribuna (por assim dizer, favorável à festa),
com adeptos de parte a parte.
- 12/06, n. 473 (Festa
de Mattozinhos, a redação)[5]
;
- 18/06, n. 474 (Festa
de Mattosinhos, “Mário”);
- 26/06, n. 475 (Festa
de Mattozinhos, “Sertório”);
- 26/06, n. 475 (Festa
de Mattozinhos, A. de Lara Resende);
- 08/07, n. 476 (Ainda
a Festa de Mattosinhos, Monsenhor Gustavo Ernesto Coelho);
- 08/07, n. 476 (Festa
de Mattozinhos, Frei Cândido Wroomans- carta aberta respondendo acusações) [6];
- 08/07, n. 476 (Festa
de Mattozinhos: aquella que o snr. Bento patrocina... , A. de Lara
Resende);
- 10/07, n. 477 (Festa
em Mattozinhos, Monsenhor João Pio);
- 24/07, n. 479 (Festa
de Mattozinhos, A. de Lara Resende - carta aberta ao arcebispo);
- 24/07, n. 479 (A
Festa de Mattozinhos, João L.da C. - carta enviada de Belo Horizonte);
- 24/07, n. 479 (Ainda
a Festa de Mattozinhos, “Saulo”).
Com
outro tanto de respostas em A Tribuna, também em 1924:
- 22/05, n. 545 (Chronica,
Bento Ernesto Júnior);
- 01/06, n. 548 (Palmo
e meio, “T.B.”);
- 05/06, n. 549 (Respondendo
a uma torpeza, Hildebrando de Magalhães);
- 05/06, n. 549 (Chronica,
Bento Ernesto Júnior);
- 08/06, n. 550 (Festa
de Mattosinhos, anônimo);
- 12/06, n. 551 (Palmo
e meio, “T.B.”);
- 15/06, n. 552 (Festa
de Mattosinhos, Bento Ernesto Júnior - carta aberta a frei Cândido);
- 15/06, n. 552 (s/título, D. Helvécio Gomes
Oliveira a Basílio de Magalhães - comentários de Bento Ernesto Júnior);
- 19/06, n. 553 (Festa
de Mattosinhos, João Thomé);
- 29/06, n. 556 (Pá
de cal... , Hildebrando de Magalhães);
- 29/06, n. 556 (Festa
de Mattosinhos, Bento Ernesto Júnior);
- 17/07, n. 561 (Festa
de Mattosinhos, Bento Ernesto Júnior - resposta ao Mons.João Pio).
Num palavreado infindável, os longos textos
descrevem o descontentamento de ambos os lados. De sua leitura se depreende que
a briga tomara a horas tantas, um caráter pessoal, quiçá político. Artigos
inteiros nem sequer comentam a festa, mas apenas que fulano ou beltrano não tem
bom senso, moral, caráter, piedade, educação, cultura, catolicismo, civismo e
outras coisas mais. Alguns usaram de pseudônimos para asssiná-los. Surgiram
artigos de matéria paga. Revidava-se. Escreviam-se tréplicas. Um deles,
contra-festa, encerrou-se dizendo: “A
esses amigos da Festa - católicos ou não - pedimos pouco, muitíssimo pouco: é
que sejam razoáveis!...” (Acção
Social, n. 473). Bento Ernesto Júnior na edição 522 d’A Tribuna escreveu com veemência contra Frei Cândido, culpando-o
pela paralisação, o que causou fortes protestos no Acção Social, n. 474 e 475. Bento Ernesto Júnior, de outro lado, em
extensas argumentações, condenava a brusca paralisação, pois não considerava os
jogos justificáveis para tanto e ainda criticou o uso de alcunhas pelos
signatários das matérias. Daí por diante cada acusação induzia a uma resposta.
Enfim, a polêmica foi escandalosa.
Vale
destacar que o assunto tomou proporções acentuadas: uma carta vinda da capital
do estado foi publicada pelo Acção
Social. Outra matéria contrária à festa, foi publicada no jornal O Municipio, de Lavras, assinada por um
“sr. X”, que mereceu dura resposta de Hildebrando de Magalhães, porque o tal
acusara a festa de ter tamanha desordem que redundou no assassinato de um homem
a punhaladas na porta da Igreja de Matosinhos, poucos anos antes. O defensor
argumentou que o fato ocorreu mas que não fora motivado por desordens da
jogatina, mas por uma questão pessoal entre os contendores. Lá de Lavras o sr.
X lançou de novo n’O Municipio, toda
sorte de impropérios contra Hildebrando, que ainda uma vez o retruca a 29 de
junho. Até o deputado federal Basílio de Magalhães, escreveu um telegrama ao
arcebispo pedindo reconsiderar a decisão. Este lhe respondeu por carta, que a
decisão podia ser temporária, até se resolverem os problemas que acometiam os
jubileus, como o de Piracicaba, Bacalhau, Congonhas, etc., e que não guardasse
rancor. Não é de admirar esta resposta. Bento Ernesto Júnior já escrevera ao
vigário uma carta aberta, na qual indagava acerca da proibição, do por quê ... “não a estendeu até a festa da Trindade, em
Tiradentes, que é a mesmissima festa de Mattosinhos, com algumas aggravantes a
mais? Porque não foi prohibida a festa de Congonhas-do-Campo, que é a mais desbragada
feira de libertinagens, latrocinios e desordens?”
Acusa
então a justiça empregada de ser semelhante a de Pilatos. Já dissera antes, a
22 de maio, sobre a acusação de imoralidade deste evento que se a festa era
imoral então... “immoral é toda a família
sanjoannense, que, ha seculos, a vem assistindo e nella toma parte.”
Realçando a atitude hipócrita do clero, lembrou das coletas em prol da Igreja
que fazia Frei Cândido, que, nos seus dizeres, “há vinte anos explora o povo em Mattosinhos com rifas e cumbucas” (A Tribuna, 17 de julho).
“T.
B.” já dissera com lamúria a 01 de junho que o mesmo arcebispo, que quando de
sua estada em São João elogiara as crianças, agora suprimia seus divertimentos
com o fim da festa:
creancinhas que gostam tanto da festa e do Senhor Bom Jesus de
Mattosinhos, do cavallinho de pau, do busca-pé, do pau de sebo com a nota de
cinco mil réis ventilando lá em cima, do trem, do innocente jaburú, do foguete
de lagrimas. (...)
impossível. Não creio. S.revm. gosta muito de pilheriar. E, muito
respeitosamente, peço venia a s.revma para dizer-lhe que, desta vez, a graça
está meio dura de se roer...
A
reação contra a atitude eclesiástica foi tão intensa que se articulou fazer uma
festa sem atos religiosos, só com parte profana, obtendo esta idéia tal apoio,
que A Tribuna de 08 de junho diz :
Está plenamente assentada a realização da tradicional festa de
Mattosinhos, que terá logar em tres dos ultimos dias do corrente mez. Com o
objectivo de promovel-a, está sendo constituida uma importante commissão, que
terá o patrocinio da nossa Camara Municipal. (sic)
A
doze daquele junho remoto reafirma expressamente: “serão feitas, ainda este mez, as festas de Mattosinhos, sem as
solennidades religiosas”.
Na
citada carta (fechada) de Dom Helvécio Gomes de Oliveira a Basílio de Magalhães,
havia esta famosa promessa, para amenizar o descontentamento dos são-joanenses
e a justificativa de que a festa só estaria paralisada até o seu cumprimento: “mandei dar os passos precisos para a
creação da parochia de Mattosinhos, talvez ainda neste anno a inaugurar-se”.
A
paróquia contudo somente foi inaugurada 36 anos depois da promessa.
Esta
carta gerou novas polêmicas, pois os que apoiavam a Igreja diziam que Bento
Ernesto Júnior que a publicara, não tivera autorização para tal. Vale ressaltar
que o diretor de A Tribuna era o Sr.
Basílio de Magalhães.
É fato que os meandros desta
polêmica merecem um estudo à parte, à luz dos interesses políticos e religiosos
da época.
Um
ato público com banda de música e discursos foi feito em frente a Matriz do
Pilar em apoio a Frei Cândido, noticia o Acção
Social a 06 de agosto (n. 480), sob o título “Manifestação de Apreço”,
discursando o Dr. Augusto Viegas (pelos católicos da cidade), Dr. Pinto Coelho
(pela União Popular e Irmandades religiosas), Prof. Lara Resende, Sr. Alberto
Magalhães Filho (em nome da mocidade católica) e Sr. Guilherme Barcelos (pelos
operários).
Monsenhor
Gustavo já sofria há tempos de severa enfermidade e faleceu pouco depois, a
20/08/24. O Acção Social do dia 22
daquele mês (n. 483) traz estampada a foto do sacerdote em meio a uma longa
matéria a seu respeito, emoldurada por uma larga tarja preta em sinal de luto.
Com sua morte a briga esfriou. Frei Cândido[7]
assumiu interinamente o seu cargo até que se nomeou para tal o jovem Padre José
Maria Fernandez, de respeitadíssima memória nesta cidade. Foi o fim da polêmica
e o retorno da festividade, ainda que simplificada, naquele ano
excepcionalmente em setembro e a seguir na data convencional ou a 3 de maio,
dia da Invenção da Santa Cruz.
A
briga terminou inglória, sem vencidos, sem vencedores, causando desgastes em
cada parte.
Notas e Créditos
*Texto: Ulisses Passarelli
[1] - Não obstante a imensa popularidade do Divino
nessa região mineira é notória a ausência de templos a ele consagrados. Contudo
há registro de um capela da qual é o orago no antigo Pântano das Lavras do
Funil, citada por Sebastião de Oliveira Cintra na efeméride de 20 de outubro de
1806, e outra, na zona rural de São Vicente de Minas, à qual tinha relevantes
trabalhos de talha e pintura, esta de estilo ilusionista, atribuída a Joaquim
José da Natividade. Alvo de depredações em razão do isolamento, teve sua parte
artística trazida para São João del-Rei onde foi restaurada pelas competentes
mãos de Carlos Magno de Araújo e foi incorporada a uma Capela do Espírito Santo, construída aqui, na Rua Maestro Batista Lopes (antiga Rua das
Flores), graças aos esforços encabeçados pelo Monsenhor Sebastião Raimundo de
Paiva. Foi benta em 2012.
[3] - Não obstante este texto ser de junho de 1924,
seis meses antes tais resoluções já haviam sido publicadas na cidade, como se
pode conferir no Acção Social, n.447, de 13//12/1923.
[4] - Há uma rua com o seu nome no Bairro Dom Bosco
(parte do Bairro das Fábricas). Escreveu a letra do hino da cidade.
[5] - O redator era o próprio Monsenhor Gustavo.
[6] - Motivada por acusações de Bento Ernesto Jr. ao Bispo D. Helvécio pela implicância contra o jogo, haja vista que outros bispos
mineiros nada faziam contra a jogatina em várias festas religiosas daquele
tempo: D. Antônio Viçoso, D. Benevides e D. Silvério Gomes Pimenta. Frei
Cândido os defende e justifica.
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