quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Águas fluviais em Matosinhos

O Ribeirão da Água Limpa [1] corta de ponta a ponta o Bairro de Matosinhos. Suas nascentes estão entre 1.000 e 1.110 metros de altitude, nas grotas que dividem os morros mamilonados do sul do município, no distrito de Emboabas, criando aquela paisagem de “mar de morros”, cobertos ora de campos, ora de cerrados, com capoeiras nos entremeios. Também algumas fontes estão nos brejos de altitude, nas populares “noruegas” ou “noroegas”, com argila cinzenta, apropriada à cerâmica artesanal.

Fonte boa para captação de águas para abastecimento público vai gradativamente engrossando em volume pela convergência dos afluentes, cujos principais podem ser assim enumerados em direção à cidade:

- na margem direita: Córrego Porteira de Chave, Córrego Poço Fundo, Córrego da Ponte, Córrego das Galinhas; 
- na margem esquerda: Córrego Retirinho, Córrego do Açude, Córrego Laranjeiras, Córrego das Amoras, Córrego do Morro Grande, Córrego do Cala-boca, Córrego do Lenheiro, Córrego do Quicumbi.

Dos subafluentes destacam-se o Córrego Bandeira (que conflui para o Retirinho), o Córrego Candinho (unindo-se ao Laranjeiras), o Córrego do Português (com barra no do Morro Grande) e dentro da cidade, Córrego das Águas Férreas, Rio Acima, Córrego do Segredo, Córrego da Tabatinga (que vem da Caieira) e Córrego da Bela Vista, convergindo para o Lenheiro. Dentre outros subafluentes e afluentes de subafluentes.

Aliás, muita gente confunde pensando que o Ribeirão da Água Limpa desemboca no Lenheiro, mas é o contrário, pois este possui bem menos volume que aquele. Esta observação de que o Lenheiro é afluente do Água Limpa, corrobora GUIMARÃES (1963: p.26) falando sobre o Ribeirão da Água Limpa: "Em Matozinhos, recebe o córrego do Lenheiro, o qual atravessa a cidade." (o grifo é nosso).

O trecho urbano de ambos foi muito alterado, tendo suas caixas remexidas por garimpeiros de outrora (haja vista a famosa Lavra do Canal) e por tratores hoje: canalizações, desvios, aterros e os malfadados emissários de esgoto.Todas estas águas se reúnem para juntar-se ao Rio das Mortes em sua margem esquerda, próximo aos fundos da sede do América Futebol Clube. 

Em seu trecho rural ainda se pode ver que o nome deste ribeiro é justo. Suas águas justificam a escolha, pois são límpidas. Forma em certas piscinas naturais muito aprazíveis para o banho, como no lugar chamado Três Poços, no Capivara e na Segunda Ponte (a ponte que cruza a BR-265 sobre ele). Mas já vai ficando perigoso nadar aí, posto que as péssimas situações sanitárias do subúrbio de Matosinhos fizeram com que fosse todo infestado pela esquistossomose. O caramujo planorbídeo que hospeda o agente transmissor é o Biomphalaria glabrata que habita naturalmente nossos cursos d’água. Em 1978, com a vinda da Ferrovia do Aço, estabeleceu-se junto ao Água Limpa um acampamento de operários num sítio sem condições sanitárias. Suas fezes contaminadas levaram para o ribeiro as larvas do Schistossoma mansoni, verme platelminto trematódeo causador da tal doença, a popular “barriga d’água” e infestaram os caramujos até então puros. Resultado: o Ribeirão da Água Limpa, os seus afluentes Cala-boca e Lenheiro e parte do Rio das Mortes ficaram como área de risco da doença, com dezenas de vítimas parasitadas. Em 1983 iniciou-se o combate ao mal que aflige os moradores ribeirinhos[2], mas até hoje não foi de todo extirpado. 

Desde que adentra na retaguarda do Grande Matosinhos, o ribeirão recebe toda sorte de dejetos, sem nenhum tratamento, que emporcalham suas águas. Há vinte anos, o lugar chamado Ouro Preto, perto da junção com o Cala-boca, com rara beleza, era preferido para o sadio divertimento aquático, bem como o poço vizinho conhecido por Árvore de Óleo. O lugar dá hoje pena de ser visitado, pois ali as águas antes esverdeadas sobre o fundo pedregoso são agora cinzentas de putriqueiras. O lixo e o desmatamento ciliar ferem as margens, que estão com barrancos nus e em processo de desmoronamento. Por conseguinte está assoreado o leito do ribeiro. Há uma exploração desordenada de areia e cascalho, meio de vida da população sofrida do entorno. A ocupação sem planejamento das margens, com desrespeito ambiental é uma constante. Para não contar outros problemas sociais ali existentes.

Chegam-lhe as águas podres do Córrego das Galinhas, que divide o Pio XII do Bom Pastor e cujos projetos de canalização e saneamento já deram “panos para as mangas”. 

Assim vai atravessando o Grande Matosinhos. E como num golpe de misericórdia, ao pé da ponte junto à rodoviária onde nos chegam os turistas, recebe as imundícies do Lenheiro, que traz o esgoto de quase toda a cidade. E abaixo ainda pega de ambos os lados pequenas águas canalizadas em manilhas, invariavelmente contaminadas.

Fedentina, urubus, sacolas de lixo, entulhos nas margens, enchentes que poderiam ter bem menor proporção na invasão das casas, ausência de árvores, de urbanização, proliferação de mosquitos, verminoses e outras doenças, desaparecimento dos peixes, diminuição do fluxo d’água (vinham de canoa até a confluência do Lenheiro): eis o triste panorama do “Ribeirão da Água Suja”.

Os noticiários de toda espécie avisam de tempos em tempos sobre a diminuição das chuvas, as longas secas, efeito-estufa, poluição dos mananciais, derrubada das matas ciliares e destruição das minas. Assim é que o maior problema futuro para a humanidade será a falta de água potável. A ONU, chamando atenção para o fato decretou 2003 como o Ano Internacional das Águas e o período de 16 a 22 de março como a Semana Mundial da Água. Em 2004 a Igreja Católica escolheu as águas como tema da campanha da fraternidade: “Água, fonte de vida”. 

Alguém poderá achar a questão distante e de exclusiva responsabilidade governamental. Esquece-se que o cidadão tem direitos sim, mas deveres também. Cabe a cada um de nós preservar o que está a nosso alcance. Dou exemplos.

No centro da cidade de São João del-Rei um conhecido jogava diariamente sua sacola de lixo doméstico dentro do canal do Córrego do Lenheiro porque o caminhão, segundo ele, passava muito cedo e no fim do ano os lixeiros pediam por meio de envelopes contendo versinhos, uma colaboração ($) para o Natal em suas famílias. E ainda porque na beira do passeio, cachorros vadios rasgavam o saco de lixo. Com dificuldades, foi convencido a mudar de atitude. Passou a colocar num destes suportes de ferro que deixam o lixo suspenso. Mas uns vândalos de madrugada, voltando do baile, quebraram o suporte e o homem voltou a jogar lixo no córrego.

Na “enchente das abóboras” de 2003 (dezembro-janeiro) o rio estava bem cheio e vim à margem ver o torvelinho das águas e me admirei com o lixo que ali descia entre moitas de aguapés e galhadas. Eram garrafas em quantidade, muito isopor, sacolas repletas de lixo e até um grande tubo de imagem de televisão. Frascos nem se fala. Tantos que resolvi contá-los. Postado numa pedra junto à vargem, em Santa Cruz de Minas (margem oposta a Matosinhos), contei em quinze minutos, deste observatório fixo, 64 frascos plásticos descendo à minha frente, entre recipientes de refrigerantes (“pet” - o campeão!), água mineral, óleo de cozinha, pesticida, produtos de limpeza e de beleza, óleo automotivo e álcool. Uma pequena projeção: com o rio cheio, nesta proporção, seriam 256 frascos em uma hora; em um dia, 6.144! O plástico demora mais de cem anos para se degradar. 

Recordo ter visto em 2005 um sofá velho jogado no leito do Água Limpa junto à Ponte do Athletic (Ponte Presidente João Pinheiro), na entrada de Matosinhos e três anos depois um outro. 

Logo acima, debaixo da Ponte Beltrão, dizia-me um senhor, existira outrora uma fonte de água mineral magnesiana que derramava para o Água Limpa. Desapareceu sem proveito, contaminada.


                                     
Rio das Mortes, nos fundos de Matosinhos, margeando a estrada do Sutil. 2011. 



 Um cascudo (loricariidae) visualizado no Córrego do Cala-boca. 
A biodiversidade local ainda é mal conhecida e clama por preservação. 24/03/2013. 



Outro habitante aquático do Córrego do Cala-boca, observado entre os cascalhos do leito, 
aparentando ser um crustáceo. 21/11/2009.



Referência Bibliográfica

GUIMARÃES, Fábio Nelson. O Município de São João del-Rei aos 250 anos de sua criação: 1713-1963. São João del-Rei: Progresso, 1963. 55p.


Notas e Créditos


* Texto e desenho do cascudo: Ulisses Passarelli.
** Fotos: Rio das Mortes, Iago C.S. Passarelli; crustáceo: Ulisses Passarelli.
*** Leia também:

DOIS CAUSOS DE MATOSINHOS




[1] - Este item é fruto da adaptação de dois artigos avulsos, intitulados “Água Limpa”  e “Ainda sobre as águas”, que escrevi em 2004. As fotografias não faziam parte dos artigos originais. 
[2] - Cf. Gazeta de São João del-Rei, n.14, 17/10/1998. 

2 comentários:

  1. Parabéns pela matéria sobre a Colônia do Marçal; qual sou descendente e não sabia a origem. Também a Ponte do Porto, onde tive oportunidade de atravessá-la já quase em ruínas quando garoto. Obrigado

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  2. Parabéns, Ulisses, material fundamental para a elaboração do inventário da estrutura de captação de água potável do Ribeirão da Água Limpa. Valeu!

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